Rubens Kignel
4 min readDec 20, 2019

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Não tem jeitinho nem jeitão, quanto menos "foda-se"

Esse mês eu li “A Bailarina de Auschwitz”, cujo título original não é esse e sim: “A Escolha: escapando do passado e abraçando o futuro”. O título original faz muito mais sentido, e aliás era o objetivo da autora, querendo mostrar que as escolhas se fazem nos mais variados níveis, sejam mentais, emocionais ou gestuais.

As situações de stress, que podem levar ao burnout, pressionam nossas escolhas, mas jamais a determinam.

O título em português é uma ponta no iceberg da intensa vida da autora hoje com 96 anos, e não representa a importância de sua vida e de seu texto biográfico, mas talvez sirva como chamada de venda.

Também li “Charlotte” que conta a vida de uma menina judia Berlinense que segue a carreira de pintora nos anos 30, começo do governo nazista. Charlotte também teve que fazer escolhas dentro de uma ética fundamental: que funda e dá fundamento ao humano.

Charlotte acaba sendo assassinada no campo de Auschwitz aos 16 anos, mas deixa sua obra e sua história.

Foi presa por um oficial nazista obcecado e doente que levou 70000 judeus ao campo de extermínio. Numa de suas investidas foi ao sul da França para arrematar um resto de judeus que haviam se escondido por lá e entre eles estava Charlotte.

Importante acrescentar que no final da guerra esse oficial fugiu para a Síria, onde foi bem recebido, porque tinha conhecidos com os quais comerciava e acabou vivendo lá até sua morte aos 95 anos.

Foi entrevistado por um jornalista, que conseguiu chegar a ele há alguns anos atrás. Ele declarou que: 'havia feito tudo corretamente e faria tudo outra vez se fosse necessário'. Ele era e acreditava nisso em sua pessoalidade e jamais mudou, assim como existem pessoas que jamais mudam.

Esse mês também assisti ao filme “Bacurau”. A história de um povoado que é invadido de maneira avassaladora pela desumanidade apoiada pelo mundo virtual ou pelo pior que existe no homem da época virtual, que perde toda e qualquer empatia ou compaixão pelo estar com o outro humano diferente.

Isso acaba levando um povo aparentemente pacato a contra-atacar, para salvar suas vidas, com a mesma fúria.

Também li “Fascismo” de Umberto Eco, que num texto curto e grosso nos mostra o quanto o fascismo está enraizado em qualquer um de nós e que especialmente em situações de extremo stress, seja emocional, moral ou racional pode aflorar a ponto de perdermos, por medo, toda a capacidade de estar com o outro.

Sempre que o outro for diferente e a diferença nos ameaçar real ou subjetivamente.

Nenhum dos autores diz um “Foda-se” a essas situações, todos vão a fundo em questões humanas perturbadoras. Não tem jeitinho nem jeitão.

Na manchete do jornal Globo online de um dia desses Bolsonaro declara: “Vou caçar a cabeça deles”. Não vou me estender muito nas falas do Bolsonaro que são conhecidas, mas não posso deixar de repetir que todas são violentas e humilhantes, vindo de todos os membros de sua família.

Parece filme, mas não, é a realidade de nosso dia a dia. A mensagem é essa: "sejam assim e denunciem quem não for. Não tenham dó, nem compaixão, nem empatia e acreditem em deus todo poderoso".

Ele é assim e como ele mesmo diz não vai mudar porque além de ser isso acredita nisso, tal qual a história do oficial nazista e dos torturadores.

Tem gente que é assim e não muda, é assim em pessoa, não é uma personalidade psicológica. O único modo de enfrentá-los ou é sendo Bacurau ou é com um movimento social que dê uma basta nisso e o coloque em um lugar em que não machuque mais os diferentes.

Muitas vezes somos surpreendidos por questões que jamais imaginaríamos que poderiam acontecer, tanto dentro da gente quanto fora da gente.

Situações na vida podem nos transformar em vítimas ou algozes inesperadamente de surpresa.

Podemos facilmente acreditar que o que estamos vendo lá fora é tão “inacreditável”, que vai passar ou vai parar ou é impossível. E não mais que de repente estamos frente a frente com a tragédia da qual é muito difícil escapar.

O “inacreditável” pode vir também de dentro, jamais imaginamos que podemos tomar atitudes que se transformem em dramas trágicos sem saída.

Não tem jeitinho, nem jeitão, temos que prestar atenção em detalhes de nossos gestos e linguagem, muitas vezes carregados de coisas imperceptíveis a nós mesmos, mas muito reveladoras de nossos pre-conceitos.

Se nos conscientizarmos temos tudo para melhorar e educar o mundo em que vivemos e nas nossas comunidades.

Encontrar um espaço interno e externo de tolerância pode ser sofrido, pois exige atenção, mas a recompensa será grande.

Vamos nessa que vai dar.

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Rubens Kignel

Professor e Psicoterapeuta, Dr. em Comunicação e Semiótica (Universidade de Bologna). Ensina do Brasil, Europa, Japão nos últimos 40 anos.