Rubens Kignel
12 min readMar 6, 2020

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Ressonância: a arte de com-viver

Espinosa especulou que se a natureza do corpo de uma outra pessoa é como a natureza de seu próprio corpo, então nossas idéias do corpo da outra pessoa, como nós o imaginamos, vai envolver uma afecção de nosso corpo com a afecção do outro corpo. Conseqüentemente, se nós sentimos alguém, como nós, ser afetado por algum afeto, esta imaginação expressará uma afecção de nosso próprio corpo, assim como a do outro.

Em psicoterapia ressonância é comunicação não-verbal. Alguns autores, se referem com diferentes nomes: para Wilhelm Reich: Indentificação Vegetativa, para Jay Stattman: Transferência Orgânica, para Stanley Keleman: Ressonância Somática, para Kernberg: Unidade Primitiva de Relações Objetais.

A ressonância pode ser percebida e vivida de várias formas, como por exemplo, através da respiração ou da dança. Diálogos ou padrões da respiração serão vistos como funções de vínculo social que criam ou não criam contato.

“Respiração significa construir conexões, comunicar, atravessar pontes.”

Uma mãe que não ressoa com seu bebê não se comunica, pais que não ressoam com os filhos não os compreendem, professores que não ressoam com a classe não se comunicam, casais que não ressoam não tem prazer na convivência, governos que não ressoam com o povo não governam.

Relações que funcionam a partir de experiências ressonantes marcam territórios, educam, ensinam, treinam e criam uma relação músical de canto e dança que dinamiza a comunicação, deixando uma melodia, um som, uma imagem, que marca o sentido, o encontro, muito mais que palavras perdidas sem conexão com o organismo, simples atributos.

Pensando na dança como um sistema de comunicação que traz em si um conteúdo, que define espaços e possibilidades anteriores ao gesto, caberá a nós nos conscientizar e lidar com as possibilidades de transformação.

O fato de os bebês serem capazes de imitar desde o nascimento pode nos deixar pensar que a ressonância motora é a origem da imitação entre os homens, não como um reflexo, como mostram algumas pesquisas neo-natais, mas os bebês imitam intencional e seletivamente as ações produzidas pelos humanos e não aquelas produzidas por máquinas.

Estudos de neuro-imagem mostram que quando eles observam uma pessoa sem objetivo preciso, as regiões implicadas na ressonância motora (sistema límbico) se ativam. Em contra-partida, se eles observam com o objetivo de imitar, as regiões do córtex frontal especializadas nas funções executivas se ativam. A imitação desta forma não se reduz simplesmente a um fenômeno de ressonância, mas implica numa consciência de si mesmo; esta experiência nos permite diferenciar quando os outros são similares e diferentes de nós.

Neurônios-espelho foram descobertos por acaso pela equipe do neurocientista Giacomo Rizzolatti, da Universidade de Parma, na Itália.

“Nosso conhecimento do motor e a nossa capacidade de ‘espelhamento’ nos permitem compartilhar uma esfera comum de ação com os outros, dentro do qual cada ato motor ou cadeia de atos motores, sejam eles nossos ou dos demais, são imediatamente detectados e intencionalmente compreendidos antes e independentemente de qualquer mentalização”, observa Rizzolati.

No sistema de ressonância motora, podemos pensar no “efeito camaleão” que nos mantém em vínculo social entre os nossos grupos e sub-grupos, basta observar o comportamento dos adolescentes, visto que cada grupo possui seu jeito especial de ser, pensar e se vestir, produzindo um movimento ressonante que os mantém magneticamente juntos e semelhantes, cada um com sua própria subjetividade.

A empatia corporal favorece uma relação de segurança e encoraja uma expressão expontânea dos protagonistas. Já se sabe que a criança faz um espelhamento da face da mãe 36 horas depois do nascimento de acordo com pesquisas de Daniel Stern. O ritmo, a intensidade e a forma da relação não verbal marcam a relação como veremos a seguir.

Conta o professor Dr. Gilberto Safra (A Face Estética do Self, 1999), que certa vez visitando um orfanato, entrou em um dormitório de bebês em seu primeiro ano de vida.

Diz ele que haviam três grupos de crianças. Em um deles as crianças gritavam e agitavam os braços em direção a quem entrasse no quarto. Outro grupo ficava indiferente ao aparecimento de alguém, mas mantinham algum tipo de atividade: balançando-se ritmicamente, ou arrancando e comendo cabelinhos. Num terceiro grupo, as enfermeiras tinham imensa dificuldade para alimentá-los, e se podia perceber a situação dramática dessas crianças, que estavam como que a perder o gesto criador da vida do self, podendo vir até a morrer, se perdessem a capacidade de se expressar a partir do caos criador.

O bebê cria o mundo, através de seu gesto, ao mesmo tempo em que cria a si mesmo. Como diz Safra, o gesto cria o objeto, mas também cria o braço ou qualquer outra parte do corpo implicada na ação, como por exemplo a capacidade de vir a conhecer o outro e o mundo.

Em sua movimentação sempre expansiva o self (si mesmo) se desdobra em gesto, inaugurando o criar, o conhecer, o amar, aspectos que podem ser denominados como o ethos do ser.

Estes aspectos são de importância fundamental na clínica de psicoterapia corporal. Por exemplo uma paciente de extrema sensibilidade, apesar de fisicamente utilizar os braços e as pernas, tinha imensa dificuldade em senti-los nas relações afetivas, era como se fizessem um trabalho maquinal que obedecia às mensagens enviadas pelo cérebro. Até que um dia ficou grávida e as reações internas do corpo pareciam completamente estranhas a ela, o que a levou a ficar muito dependente de todas as vozes a seu redor, principalmente a dos médicos. Numa consulta se vê encurralada emocionalmente e dá um grito a todos, dizendo saber exatamente o que estava fazendo e que seu bebê estava bem e iria nascer bem. O que de fato ocorreu. O grito veio do caos interno, da força germinativa de vida que marcou um território, uma ética.

A formação de desenvolvimento do vínculo, intersubjetivo, Stern chama de “companheiro evocado”, porque devido a seu caráter de entidade abstrata funciona ativamente como “acontecimento” no período considerado.

A mãe, colocando-se em relação com o bebê, com a sua ação permite que o self da criança aconteça, dando campo para que o bebê seja um ser existente.(Gilberto Safra, 1999).

A ação que não encontra a mãe desenvolve padrões de desarmonia ao encontrar o nada. A ação que encontra o outro em harmonia, sintonia se transforma em gesto, este revela que a pulsação do encontro é humanizadora: “ O gesto é a poesia do ato” [1]

Ponte, vínculo e dança

Em pesquisas filmadas e desenvolvidas pelo Dr. E.Z. Tronick e seus colegas do departamento de Pediatria e Psiquiatria da Universidade de Harvard e muito bem descrita no livro “Corpo e Palavra” do psicólogo George Downing podemos ver claramente como as conexões se desenvolvem.

Através da relação entre mãe e bebê a importância dos efeitos que as expressões da mãe provocam nas respostas expressivas do bebê a nível emocional, sensitivo e postural, significando o relacionamento. Os filmes foram feitos com duas câmeras de vídeo ao mesmo tempo, uma sôbre a mãe e a outra sôbre o bebê.

Tronick criou um experimento que denominou “cara imóvel“ (still face). Na primeira versão foram feitos videos que mais tarde foram analisados em câmera lenta numa leitura que se denominou “micro-análise”.

Nos videos as mães interagiam com os bebês de 3 meses de idade. De princípio as mães iniciariam contato com seus bebês da forma que usualmente fazem. Mais tarde em algum momento da interação não verbal, a mãe repentinamente deixaria a face imóvel (still) e congelaria todos os movimentos do corpo. Neste momento, os bebês embora chocados com a repentina mudança, reagiam desapontados e raivosos, virando a cara ou olhando para baixo.

Este experimento mostra de forma dramática a imensa expectativa do bebê de interagir e principalmente de manter a interação e que quando esta é cortada produz uma imediata sensação de anxiedade e preocupação.

A segunda versão do experimento talvez seja a que mais nos interesse. Foi realizado com bebês de 6 meses de idade. Os pares mãe/bebê foram divididos em 2 grupos:

1. Um grupo que normalmente interagia com habilidades motoras positivas, isto é, a mãe era sensível ao bebê e ao seu ritmo na melhor forma de estimulação não verbal. Em conseqüência neste grupo as duplas desenvolveram uma competência mútua de interação.

2. Os outros grupos eram formados por duplas em que a troca não verbal era caracterizada por um super ou sub-contrôle da mãe. Em outras palavras, a mãe super-dirigia ou a sub-dirigia os sinais de comunicação não verbal da criança. Assim as interações se estabeleciam de uma maneira não recíproca.

Os resultados foram claros e dramáticos. As crianças do primeiro grupo desenvolveram formas de reagir à face imóvel de uma maneira ativa, ou ficando com raiva, ou virando a cara ou procurando resgatar o contato, chamando a atenção da mãe. As crianças do segundo grupo, com baixo nível de reciprocidade reagiam primeiro retirando-se da relação como no primeiro grupo, mas mesmo desapontadas e agitadas não iniciavam nada de novo e nem tentavam resgatar o contato, simplesmente permitiam que a desconexão permanecesse.

Essa pesquisa fala por si mesma, uma parte das crianças construiu uma certa maneira motora de ser no mundo, desta forma o outro é visto como aproximável, como contatável e o self (si mesmo) é capaz de vincular-se, de animar-se e de construir uma ponte até o outro, esta criança aprende que sua ação causa um efeito, um afeto no outro. Desenvolvendo também um campo motor que se estrutura intersubjetivamente e de acordo com a relação.

O outro grupo de crianças, entretanto, fica vivendo num campo intersubjetivo diferentemente estruturado, com expectativas e disposição diferente, por exemplo para eles o senso de construção de uma ponte não verbal é fraco, a conexão motora com o outro é pouco desenvolvida. Se sentem incapacitados de produzir um efeito no outro que se transforma em algo relativamente não atingível, imodificável ou até inacessível.

É importante aqui marcar como esta dificuldade é uma dificuldade corporal, o corpo como um todo, que não se posiciona em direção ao desejo, perde o ritmo do movimento, perde até mesmo o sorriso e seus movimentos.

Vejamos a seguir algumas fotos cedidas pelo grupo do Tronick:

1. Mãe interagindo com bebê.

2. Mãe não interagindo com bebê, com o rosto congelado, vemos o mesmo na face do bebê.

3. Mãe invasora, provoca reação de fuga no bebê.

Daniel Stern (1992) em seu livro “O Mundo Interpessoal do Bebê” no qual explora os conceitos de responsividade empática e sintonia, e afirma que apesar da importância destes eventos, não está totalmente claro como eles funcionam.

Stern levanta questões sôbre atos e processos de como pessoas podem saber algo muito semelhante ao que você está sentindo, ou por exemplo como será que você pode estar “dentro” da experiência subjetiva de outras pessoas e fazer com que elas saibam disto sem necessidade de usar palavras.

A imitação seria uma maneira de mostrar isso, como no jogo de expressões faciais entre bebê e mamãe. Diz Stern que na verdade o bebê somente saberia que a mãe percebeu o que ele fez, ele simplesmente reproduziu e não precisaria ter tido nenhuma experiência interna similar.

Conseqüentemente, para que de fato haja uma troca subjetiva de afeto, apenas uma exata imitação não funciona, não conscientiza, é necessário que haja uma sintonia de afeto e de sensação, que expressem a qualidade do sentimento afetivo compartilhado. A razão de comportamentos de sintonia serem tão importantes como um fenômeno separado é que a imitação exata não permite aos parceiros referir-se ao estado interno.

Os comportamentos de sintonia, por um lado, remodelam o evento e mudam o foco de atenção para o que está por atrás do comportamento, para a qualidade do sentimento que está sendo compartilhado. É pelas mesmas razões que a imitação é a maneira predominante para comungar ou compartilhar os estados internos. Em verdade todavia, não parece haver uma dicotomia real entre a sintonia e imitação; pelo contrário, elas parecem ocupar dois extremos de um espectro.”

Há 4 anos, alguns colegas e eu começamos uma pesquisa na Universidade Bologna, no departamento de Comunicação e Semiótica, sôbre a relação e comunicação entre mãe e bebê desde os primeiros momentos de vida. Essa pesquisa está sendo realizada em diferentes culturas, para que também possamos ter uma idéia se existem diferenças significativas no relacionamento que poderiam se ajudar inter-culturalmente, além do que, como trabalhamos com a gravação de vídeos em situações naturais do relacionamento, como por exemplo: trocando fraldas, alimentando, brincando, na revisão dos vídeos fazemos na presença das mães e pais, para que seja aproveitado de uma forma a cooperar com a educação e o lidar com os filhos.

Adotamos alguns procedimentos de acordo com o psicanalista e pesquisador Daniel Stern onde nos conta que três idéias são fundamentais:

1. É importante ver mães e bebês em interações naturais, porque somente dessa forma a maioria das capacidades de ambos poderia ser vista e analisada. Stern, como nós, entende que bebes são naturalmente sociais e portanto na situação natural poderiam estar mostrando suas melhores capacidades e as mães poderiam estar presentes com sua verdadeira parte maternal possibilitando consequentemente boas observações descritivas das situações.

2. Essas experiências nos permitem ter acesso a um lado mais preciso da comunicação não-verbal através da repetição dos videos assim como em camara lenta, tendo acesso a instantes importantes da interação.

3. A observação da interação poderia ser de forma clínica e de senso comum entre observador e observado, promovendo uma “regulação mutua” como conceito básico. Dessa forma se verifica que a interação é largamente uma procura de mediação e de regulação da relação de acordo com as necessidades momentâneas de bebê e mamãe.

O neuropsicólogo Allan Schore sugere que o desenvolvimento estrutural do hemisfério direito media o desenvolvimento funcional da mente inconsciente, além disso ele supõe que uma integração de descobertas nas ciências neurobiológicas e de desenvolvimento pode oferecer uma compreensão mais profunda da origem e dos mecanismos do sistema que representam o centro da psicanálise, “o sistema inconsciente”.

Freud (1920) descreveu o inconsciente como um “campo especial, com seus próprios desejos, modos de expressão e mecanismos mentais peculiares não operados em outro lugar”.

Devido ao seu papel central nas funções inconscientes e suas atividades processuais primárias, psicanalistas estimulados por estudos da cisão cerebral, na época, começaram a ligar psicanálise e neurobiologia posicionando que o hemisfério direito é dominante para o processo inconsciente e o hemisfério esquerdo para o processo consciente.

Watt (1990)[2] sugere que o hemisfério direito contém um sistema representacional afetivo que codifica imagens self-objeto, enquanto que o esquerdo um modo léxico-semântico.

Em “Affect Regulation and the Origin of the Self” (Schore, 1994) descreve alguns mecanismos psiconeurobiológicos pelos quais as experiências de afeto especificamente atingem a maturação das experiências de dependência no hemisfério direito, mediando os processos de vínculo, e também os mecanismos psicobiológicos pelos quais a “mente direita” se organiza na infância.

O hemisfério cortical direito, que está centralmente envolvido nas funções de vínculo, é dominado pela percepção do estado emocional dos outros, por um mecanismo cortical direito posterior envolvido na percepção de expressões não verbais embutidas na face e no proseado dos outros. É também dominante por experiências subjetivas emocionais e pela detenção de objetos subjetivos.

A interativa “transferência de afeto” entre os hemisférios direitos de mãe e bebê e ou de pares terapêuticos é melhor definida como “intersubjetividade”.

O hemisfério direito está sempre envolvido em atividades inconscientes e, assim como o hemisfério esquerdo, comunica seus estados para outros hemisférios esquerdos por meio de comportamento linguístico consciente, assim, o direito, não-verbalmente, comunica seus estados inconscientes a outros hemisférios direitos que estejam sintonizados para receber estas comunicações.

Freud afirma que: “É uma coisa notável como o inconsciente de um ser humano pode reagir a de outro, sem passar pelo consciente” (Freud, 1915c,p.194).

Ele também propôs que o terapeuta deveria “ligar seu próprio inconsciente como um órgão receptor às transmissões do inconsciente do cliente….para que o inconsciente do doutor seja capaz….de reconstruir o inconsciente do cliente” (Freud,1912,p.115).

Ele chamou este estado de prontidão receptiva ou “atenção flutuante”. Bion se referiu a “devaneio” ou “estado alfa do sonho”, claramente implicando num estado de hemisfério direito do cérebro.

Este mesmo sistema de hemisfério direito a hemisfério direito é descrito na literatura neuro-psicológica por Buck[3] como “comunicação espontânea emocional”:

“Comunicação espontânea emprega específicas demonstrações do remetente que, dando atenção, ativa pré-harmonizações emocionais que são diretamente percebidas pelo receptor…O significado da demonstração é conhecido diretamente pelo receptor….Esta comunicação expontanea emocional constitui a comunicação entre sistemas límbicos….É um sistema de comunicação de base biológica que envolve organismos individuais diretamente entre si: os indivíduos em comunicações constituem literalmente uma unidade biológica”

Quantos mais desenvolvermos nossa sensibilidade ressonante com as pessoas e com a natureza melhores seremos capazes de viver uma vida de contato vivo e produtivo consigo mesmo e com o outro.

Portanto pratiquemos: RESSONÂNCIA e comunicação.

[1] Galard, J. em Safra, Gilberto, A Face Estética do Self, 1999

[2] Watt, D.F. em Schore, Allan, Affect Regulation and the Origin of the Self, LEA, New Jersey, 1994

[3] Buck,R.W. em Schore,Allan, Affect Regulation and the Origin of the Self, LEA, New Jersey, 1994

4. Kignel, Rubens, O Corpo no limite da comunicação, Ed. Summus.

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Rubens Kignel

Professor e Psicoterapeuta, Dr. em Comunicação e Semiótica (Universidade de Bologna). Ensina do Brasil, Europa, Japão nos últimos 40 anos.